Cântico de Desespero e de Esperança
Ao Dr. José Vasco Mendes de Matos
1 — Meu Deus, aqui estou serenamente, neste entardecer de Agosto em que tudo parece mais luminoso e as sombras das árvores se «adensam e alongam» nos pinhais! Recordo o poeta Lopes Vieira:
Pinhal de heróicas árvores tão belas, Foi do teu corpo e da tua alma também Que nasceram as nossas caravelas Ansiosas de todo o Além...
Tudo, nesta hora maravilhosa de sofrimento, perpassa na minha imaginação: desde os golpes duros dos homens, ao sorriso das crianças e à inquietação da juventude!
O perfume que me vem dos pinheiros e do mar, penetra vivamente em mim, atenuando a minha dor e esta hora de dura provação! Tenho as mãos limpas e o coração dilacerado! Tanta gente a trabalhar na sombra, envenenando as vidas e consciências alheias! Os ímpios não suportam a luz do sol e da verdade. Escondem-se e actuam! Tentam conquistar os mais poderosos e, depois, em conjunto ou separadamente, amordaçam e vasculham a própria podridão das suas almas. Almas que cheiram mal, que têm o sabor das suas ideias e que os outros suportam por medo ou cobardia.
Por isso, só as almas simples podem saborear a luz doirada do sol, o aroma das sebes floridas e as suas irradiações luminosas! Só elas podem sentir a vida sem horizontes, que está para além dos mares e dos pinheiros e que se pressente no agonizar desta tarde luminosa!
Nesta beleza sem fim, quero renovar toda a minha vida, na resignação, na humildade e na obediência!
Penetro no mais fundo da minha alma e, então, descubro a imensidade do meu nada.
Meu Deus, aqui estou silenciosamente, pois jamais fui capaz de descobrir noutro lugar a serenidade tão necessária à minha alma. Só aqui, beijando no sol a tua face resplandecente, eu sou capaz de sentir as maravilhas que prodigamente criaste...
Por isso aqui estou ouvindo o mar, ora a bater enfurecido nos rochedos, ora espreguiçando-se na areia em rendilhados caprichosos!
Que seria de mim, se não fosse o perfume que sinto na alma? Que seria de mim, se não tivesse a ternura do teu olhar que dulcif ica a minha existência?
Dei-me a todos e a tudo. Lutei pelos desamparados! Tentei valorizar ao máximo a minha vida para poder ser útil ao meu semelhante!
Para quê, sim para quê?
Mas nesta vida tudo parece feito de contrastes: a nossa própria alma e a natureza inteira! Enquanto as aves cantam docemente, os homens que colocaste no meu caminho, indiferentes à verdade, sentem a alegria do sofrimento alheio!
Que Terra tu me deste, meu Deus para viver! Como ela parece amaldiçoada pelos homens!
2 —«Junte-se a isto a intenção tão comum, de fazer sofrer os outros, por malícia, por crueldade, por simples desejo de vingança, em certos casos tão somente para poder gozar da dor alheia, e pergunto a mim mesmo como será possível o não ver esta verdade, tão evidente, que vivemos todos na injustiça? Será isto a vida verdadeira? Não me posso resignar a crê-lo: Seria absurda e seria má. E não posso acreditar, outrossim, que em virtude de um concurso de circunstâncias, que ninguém pode acreditar nem mesmo prever, o que é absurdo se torne bom». (Carlos Renouvier. Últimas Conversações—Pags. 55-56).
Sim, não posso acreditar que numa sociedade que se diz cristã se saboreie o sangue das vítimas inocentes, intencionalmente preparadas para o holocausto!
Eu sei, meu Deus, que Tu não és indiferente a todo este mar de dor que se sobrepõe ao mar azulado deste maravilhoso S. Pedro de Moel! Sei que me farás justiça, mas receio que chegue tarde, dando tempo demais aos algozes que se banqueteiam com- o repasto de corações puros, de almas honestas amordaçadas pela noite da existência!
É um fim trágico, uma caricatura da vida verdadeira, tantos anos ordenada para o bem de todos e de tudo!
Remorsos? O criminoso profissional já não sente remorsos! A consciência foi-se adulterando como o ferro exposto à chuva, durante anos e anos!... Dentro de mim sinto as mãos suplicantes dos desesperados, bocas espumando raiva, tanto suor inútil, tanta calúnia! Fizeste-me compreender na pequenez do meu nada a grandeza redentora do teu sofrimento ?
Onde estão as pegadas dos teus Apóstolos do Passado? Onde se encontra o teu Evangelho na vida dos homens? Onde estão os Mestres e as Escolas, espalhando a Tua Mensagem? Onde estão as mães de outrora abraçando-te no abraço que davam a seus filhos?
Quem espalha pelas escolas, pelos cafés, pelos cinemas... tanta imoralidade, tanto cepticismo, tanta miséria de filósofos derrotistas, tanta neblina impenetrável de ideias? Quem?
Lembra-te, ó meu Deus, que vivemos na Terra que tu nos criaste, com rios caudalosos, mares e oceanos sem fim, que entoam eternas canções de amor à tua grandeza! Lembra-te que somos frágeis! Não esqueças que a civilização que os nossos antepassados criaram à sombra acolhedora do teu Evangelho, espalhando templos e maravilhosas catedrais... parece sossobrar!
Eu próprio me sinto naufragar ao ver tanta coisa a destuir a seiva fecundante da tua vida em nossas vidas! Não Te esqueças de nós, que vivemos neste mundo em contínuas mudanças e cheio de contrastes dolorosos! Não Te esqueças de nós,
Ô Pai Nosso Que estais no Céu!
No Céu e em toda a parte. Tu fazes crescer as searas, alourar o pão; perfumas os pomares! Murmuras docemente nos regatos e pareces escondido nos próprios sonhos que nunca desabrocharam! Que és entusiasmo do adolescente e corres nas lágrimas da mãe que perdeu o filho! Que incendeias o poente! Que estás no perfume dos lírios! Que és o amparo dos abandonados e a aragem que mitiga as dores de corpo e de alma! Tu que és a própria poesia feita sonho, a Parábola que os homens tentam decifrar; a Verdade verdadeira que tantos filósofos não entendem!... O fogo que não se apaga! Só tu dás sentido ao sofrimento, e, por isso, não quero desesperar, nem cair. A seara é imensa, mas está deserta. O trigo cresce de mistura com o joio e já mal se distingue um do outro. É preciso que as espigas gradem, acariciadas pelo teu calor fecundante. Mas onde encontrar os teus obreiros, onde?
Todos falam de Paz, da Paz de um mundo que parece perdido para sempre!
Mas nas espadas continuam tintas de sangue, o ódio enfurece as almas e as cortinas de esperança desfazem-se contra as cortinas de ferro. Mas não devemos desesperar por isso eu gostaria de dizer eternamente,
Santificado seja o Teu nome.
Sim, porque eu existo. O mundo existe. E sei que nem eu, nem o próprio mundo somos por Ti abandonados. Quero viver a vida com dignidade. Nunca amaldiçoar ninguém. Como tu, quero beijar os lábios dos que cospem nas minhas faces! A todos os meus inimigos eu devo o que sou, pois sem eles nunca reconheceria a pequenez da minha fragilidade. Ensina-me a viver esta vida onde tropeço constantemente, onde caio diariamente; onde faço constantes esforços para me emendar. Oinde tantos me faltam ao prometido e onde eu falto a tanta gente, com promessas que não cumpro e desejos que não realizo. Ensina-nos o sentido verdadeiro e real das estradas desertas! Dos esquecidos de pão e de carinhos... Por isso, por tudo quanto digo ou não sei dizer-te...
Venha a nós o vosso Reino...
Vejo que as nações se degladiam. Um mar de sofrimento invade a Terra inteira! Mas não foi para isto que tu nos criaste, não! Quando é que a verdade dissipará a mentira e a calúnia? Por que permitiste
que os inocentes fossem publicamente caluniados?
Mas apesar disso, por tudo isso...
Seja feita a vossa vontade...
Assim na terra como no Céu...
Sim em toda a parte. Só tu és a fonte, a origem, a Verdade. Na dor infinita, nas gelhas da alma, nas profundidades do mar ou do inconsciente humano...
Volto de novo a dizer-te que não quero filosofias nem conhecer o sentido de tanta inutilidade, nem a confusão de tantos sistemas políticos que se degladiam e contradizem. Quero ser simples como a simplicidade do teu olhar; como a doçura dos teus gestos! Ser simples, como a luz transparente das pupilas dos teus olhos. Ser puro como a neve das montanhas. Tenho um coração que sofre e uma cabeça que escalda. Mãos que nem sempre acariciam ou erguem para Te louvarem. São como os choupos que ladeiam os riachos. Quero viver cada momento, como se fosse o último e o mais santo da minha existência. Quero abandonar o ontem que deixou sulcos na minha sensibilidade. Vivo da fragilidade, do alimento da alma e do corpo. Por isso, dá-me e a todos os seus irmãos — pois todos somos teus filhos:
O -pão de cada dia...
Tu, ó meu Deus, que vestiste com tanta beleza os líricos dos campos; que enchestes de perfume os vales e diluíste o oiro do teu manto no poente que agora contemplo, maravilhado!... Que sabes que na minha alma se encontra a essência da tua divina presença misturada com o amargor das coisas do mundo; Tu que estás presente em todas as distâncias; que sabes quem eu sou e quem não sou...
Dá-me, logo ao levantar e em cada dia que desperto para a vida, um pensamento elevado e faz que o reviva constantemente, para que todos os seus momentos sejam uma Oração!
Que tudo ordene para ti: os meus pensamentos, as minhas palavras e as minhas acções!...
Sabes que me revolto contra quem me fere e me persegue. Que borbulha na minha alma uma ânsia de chicotear quantos injustamente me perseguem sem eu saber por quê. Mas mal o teu sorriso vem ao de cima dos meus sentimentos, esqueço o mal que me fazem e a todos desculpo... Por isso,
Perdoa-me todas as minhas ofensas...
E todo o mal que fiz! E todo o bem que mão fiz ou não soube fazer!
Tentei viver em comunhão espiritual com todos os homens! Senti quase sempre a inquietação das almas e dos povos. A grande maioria deles não passa de galhos secos, sem uma vida digna! Não conhecem a seiva divina que alimenta e robustece os ramos viçosos dos grandes ideais.
Quantas vezes a estiagem não entra dentro de mim, quantas?
Eu quero emendar-me e registar todos os meus erros e defeitos,
fazendo sobre todos uma crítica honesta e construtiva. Mas, por tudo Te peço,_
Não me deixes cair em tentação!...
Quero expiar as minhas culpas e as alheias, pois sou responsável por todos os que sofrem, mesmo que não tenha sido o culpado dos seus sofrimentos.
Não me deixes cair em tentação e evita as preocupações da minha alma, que tudo destroiem e nada edificam. Que deixam nela sulcos a sangrar e entorpecem o vigor dos sentimentos! Por isso te peço: deixa--me viver a serenidade desta tarde. Comungar a beleza dos pinheiros e a inquietação do mar e
Livra-me de todo o mal!...
E quando, serenamente, a morte me vier buscar, faz que nessa hora derradeira eu bendiga ainda o teu nome. E que para todo o sempre ele seja bendito, entre todos os homens e coisas que criaste.
Bendito, como este sofrimento todo feito de injustiças e invejas, que eu julgo não merecer e que os meus irmãos mão mereciam também...
S. Pedro de Moel, 10 de Agosto de 1970.
João Frade Correia
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